sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Mosquito


Enquanto Cecília digitava uns mil e quatrocentos toques para aquela pauta chata de quarta-feira, ouviu aquele "zum" perturbador. Era aquele zunido em branco, invisível, mas que nunca passava despercebido.

Pssssss.
Zummmmmm.
Clap!

Não morreu. Mosquito safado.

Aquela dor pequena e insuportável chegava a ser angustiante. A alergia não ajudava. De repente vinha a coceira. A perna direita cheia de marcas vermelhas e avantajadas. Não sabia o porquê da obsessão pela perna direita!

Teve uma revelação absurdamente inteligente: "por que não uso o repelente?". Cecília correu e alcançou o vidrinho de repelente antes que o mosquito tivesse a ideia de picá-la novamente. Espirrou nos lugares favoritos do vilão e, quando chegou na perna direita, conseguiu enxergar aquele pequeno ponto vindo em direção à ela.

Lá vinha ele de novo. "Dessa vez eu consigo te ver, safadinho. Vem cá, vem. Vem cáááá"- PAF!

E lá se foi uma vida de provedor de pequenas angústias e desesperos.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Xícara

Por Delianne Lima

É tudo assim, à queima roupa. A angústia sangra à medida em que o coração dá sinal de vida. Batida, batida, batida. Tudo termina em um piscar de olhos. Histórias intermináveis e uma relação profunda de amor e companheirismo pode terminar em um ranger de dentes. Com força.

Depois de ler aquelas poucas linhas, a garota mal sabia o que pensar. Apenas percebia aquela sensação estranha no estômago. Era o frio. Eram as borboletas. Só que não era paixão, era o susto. A tristeza rondando feito mosca, esperando o momento certo para pousar no prato principal do jantar.
- Posso te ver de novo?
- Não, você é casado. Não me liga mais, estou na casa do macho. Você só queria ver as minhas fotos, eu sei.
- Você é esperta. Ou eu sou óbvio demais.
- É, você é óbvio mesmo.

E esse era o diálogo da revelação. Palavras bestas, idiotas, mas com um poder de fogo feroz.

Tábata nem sabia o que fazer. Enquanto Paulo estava na cozinha, ela tentava tatear em busca de alguma reação, alguma forma de entender o que acontecia. Era claro, Paulo havia traído Tábata.

Xícaras de café não servem de desculpa. Não bastava apenas isso para que ela esquecesse. Nem sabia se deveria esquecer. Nunca esqueceria. Seus pés mal a aguentavam em pé, mas sua vontade de ir embora era maior.

Saiu. A porta estava aberta.

sábado, 31 de janeiro de 2015

A Presença de Elefanta Bailarina

Ninguém entendeu por que ele estava daquele jeito. No fim de tudo, quando voltou para casa e abriu a porta do quarto, ela estava lá: a Elefanta Bailarina. Sentada na cama de casal à sua espera, guardando o seu lugar com carinho. Ele deita porque sabe que não tem outra opção. Fecha os olhos e então a parceira sopra em seu cangote, como um carinho de quem nunca abandona. O lambe com sua língua gigante, quase o engolindo, e então liga o radinho da cabeceira, que está conectado à uma aparelhagem pesada de amplificadores que ocupam todas as paredes. Há também um sofisticado jogo de luz que só é ligado quando ela quer. Ele continua ali, imóvel, de olhos fechados. Ela ergue a tromba e exibe um sorriso de excitação. Ouve-se uma graciosa canção que invade todos os quarteirões:

O carneirinho se foi
O carneirinho morreu
Que saudades do carneirinho
Ficou sozinho no breu

O chão vibra com as batidas da música. Ele lá. Os olhos fechados. A Elefanta Bailarina é extravagante e desinibida. Decide começar o seu show. Os holofotes se acendem e ela fica de pé sobre a cama. Apesar do tamanho, os movimentos são de uma precisão ninja. Sapateia, então, no corpo dele. Começa triturando os joelhos, até esmagar a cabeça. Em seguida, rodopia, se equilibrando em uma pata só, na barriga dele. Ele fica sem fôlego. A elefanta bailarina é sutil e graciosa. Ela dá um salto mortal. Seu corpo rodopia no ar, em câmera lenta. Ele pode vê-la, mesmo de olhos fechados. O corpo dela, então, cai sobre o dele como pedra n'água. Os olhos dele querem saltar das órbitas, mas ele precisa mantê-los fechados. Ele sabe que não pode fugir da elefanta bailarina. Se fugir será pior. Certamente será. A música acelera. É frevo. A Elefanta Bailarina pega o seu guarda-chuvinha. Ele está angustiado. Sabe que, no dia seguinte, as pessoas não vão entender. As pessoas não convivem com a Elefanta Bailarina. Samba. O corpo dele é usado como Marquês de Sapucaí. A Elefanta Bailarina é mestre-sala. A Elefanta Bailarina é porta-bandeira. Há um carro alegórico com uma Elefanta Bailarina gigante, cheio de Elefantinhas Bailarinas dançando em volta, com as mamas de fora. Há também a manada de bateria, da qual a Elefanta Bailarina é rainha. O tema do samba-enredo dessa noite é: a Elefanta Bailarina.

O show dura várias horas. Quatro, cinco, seis, sete, oito. Enquanto isso ele permanece ali. Olhos fechados. Fingindo que vai dormir. Fingindo pra si.

(Texto escrito pela Elefanta Bailarina, ao som de "Jealous of my boogie" enquanto Haroldo França tentava dormir)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Odonto Lógica

Por Delianne Lima

A cor do aparelho iluminava a vista a ponto de ensurdecer a luz solar. Era claro. Tão claro que Maria Eduarda não suportava ver. Enquanto fugia daquela claridade absurda, os pensamentos brotavam como brotoejas. “Mas como não posso enxergar se fui eu que coloquei aço na boca de alguém tão sorridente?”.

Nunca quis ser dentista. Herdou o consultório e todo o aparato do pai que orgulhava-se, faceiro, da filha que seguia a sua carreira. “O que? Maria Eduarda? Ah, essa é uma menina de ouro. Vai ser a melhor dentista dessa cidade. Quiçá do país!”.

A maior fraude.

Maria Eduarda encarava o pai com aquele sorriso fútil e supérfluo mas não amarelo, pois havia cuidado daqueles dentes com esmero. Quase que com ódio. Tudo para conseguir a atenção dos pais.

Seu Admastor Corista sempre dava os presentes mais específicos. Aparelhos, jogos, brinquedos de dentista. A menina cresceu com aquela pressão famigerada.

Acabou por ceder.

Pelo menos assim conseguia conquistar a afeição do pai. Ou pelo menos achava conseguir.