sábado, 31 de janeiro de 2015

A Presença de Elefanta Bailarina

Ninguém entendeu por que ele estava daquele jeito. No fim de tudo, quando voltou para casa e abriu a porta do quarto, ela estava lá: a Elefanta Bailarina. Sentada na cama de casal à sua espera, guardando o seu lugar com carinho. Ele deita porque sabe que não tem outra opção. Fecha os olhos e então a parceira sopra em seu cangote, como um carinho de quem nunca abandona. O lambe com sua língua gigante, quase o engolindo, e então liga o radinho da cabeceira, que está conectado à uma aparelhagem pesada de amplificadores que ocupam todas as paredes. Há também um sofisticado jogo de luz que só é ligado quando ela quer. Ele continua ali, imóvel, de olhos fechados. Ela ergue a tromba e exibe um sorriso de excitação. Ouve-se uma graciosa canção que invade todos os quarteirões:

O carneirinho se foi
O carneirinho morreu
Que saudades do carneirinho
Ficou sozinho no breu

O chão vibra com as batidas da música. Ele lá. Os olhos fechados. A Elefanta Bailarina é extravagante e desinibida. Decide começar o seu show. Os holofotes se acendem e ela fica de pé sobre a cama. Apesar do tamanho, os movimentos são de uma precisão ninja. Sapateia, então, no corpo dele. Começa triturando os joelhos, até esmagar a cabeça. Em seguida, rodopia, se equilibrando em uma pata só, na barriga dele. Ele fica sem fôlego. A elefanta bailarina é sutil e graciosa. Ela dá um salto mortal. Seu corpo rodopia no ar, em câmera lenta. Ele pode vê-la, mesmo de olhos fechados. O corpo dela, então, cai sobre o dele como pedra n'água. Os olhos dele querem saltar das órbitas, mas ele precisa mantê-los fechados. Ele sabe que não pode fugir da elefanta bailarina. Se fugir será pior. Certamente será. A música acelera. É frevo. A Elefanta Bailarina pega o seu guarda-chuvinha. Ele está angustiado. Sabe que, no dia seguinte, as pessoas não vão entender. As pessoas não convivem com a Elefanta Bailarina. Samba. O corpo dele é usado como Marquês de Sapucaí. A Elefanta Bailarina é mestre-sala. A Elefanta Bailarina é porta-bandeira. Há um carro alegórico com uma Elefanta Bailarina gigante, cheio de Elefantinhas Bailarinas dançando em volta, com as mamas de fora. Há também a manada de bateria, da qual a Elefanta Bailarina é rainha. O tema do samba-enredo dessa noite é: a Elefanta Bailarina.

O show dura várias horas. Quatro, cinco, seis, sete, oito. Enquanto isso ele permanece ali. Olhos fechados. Fingindo que vai dormir. Fingindo pra si.

(Texto escrito pela Elefanta Bailarina, ao som de "Jealous of my boogie" enquanto Haroldo França tentava dormir)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Odonto Lógica

Por Delianne Lima

A cor do aparelho iluminava a vista a ponto de ensurdecer a luz solar. Era claro. Tão claro que Maria Eduarda não suportava ver. Enquanto fugia daquela claridade absurda, os pensamentos brotavam como brotoejas. “Mas como não posso enxergar se fui eu que coloquei aço na boca de alguém tão sorridente?”.

Nunca quis ser dentista. Herdou o consultório e todo o aparato do pai que orgulhava-se, faceiro, da filha que seguia a sua carreira. “O que? Maria Eduarda? Ah, essa é uma menina de ouro. Vai ser a melhor dentista dessa cidade. Quiçá do país!”.

A maior fraude.

Maria Eduarda encarava o pai com aquele sorriso fútil e supérfluo mas não amarelo, pois havia cuidado daqueles dentes com esmero. Quase que com ódio. Tudo para conseguir a atenção dos pais.

Seu Admastor Corista sempre dava os presentes mais específicos. Aparelhos, jogos, brinquedos de dentista. A menina cresceu com aquela pressão famigerada.

Acabou por ceder.

Pelo menos assim conseguia conquistar a afeição do pai. Ou pelo menos achava conseguir.