sábado, 20 de outubro de 2018

Quem abriu a caixinha

Uma caixinha.
Dentro dela, o reencontro.
O eu.
Aquele amor, que ficou lá atrás.
A casa da minha avó.
A vontade de ir até a casa da minha avó.
O retorno até a sensação de ter vontade de ir até a casa da minha avó.
A voz da minha mãe.
O amparo do útero.

Uma caixinha.
Dentro dela, tudo.
Meu pai embalando a rede.
A rede mergulhando até os peixes.
O peixe, servido para o almoço.

Uma caixinha.
Dentro, as pessoas da família mastigando.
Meu avô mastigando de boca aberta.
Meu avô babando.

Uma caixinha.
A baba do meu avô.
Derrame.
Uma bíblia.

Eu não sei quando a caixinha se abriu.
Capítulos e versículos formando legendas em todas as direções.
Chiado, chuvisco. Mal sintonizado.

A caixinha.
A propaganda eleitoral atravessando os canais.
Os seus dentes atravessando todos os canais.
Demônios fogem da tela.
A escuridão eletrônica.
Correntes elétricas mobilizando pastores a conduzirem seus rebanhos de demônios em direção ao abismo.
Demônios voando.

Minha avó passeia de bicicleta nas nuvens.
Uma caixinha.
Sem fundo.
Sem chão.

Palavras não mais se reconhecem.
Palavras em crise, consolando-se umas às outras.
Palavras-canhão.
Palavras-bomba.
Palavras sem cor nem cheiro nem textura nem valor nem pai nem mãe.

Palavras se atirando no abismo.
Sem fundo.

Uma caixinha.
Uma notificação.
Modo avião.
Sem palavras.
Voando.
Bicicleta.