sexta-feira, 29 de agosto de 2014

De repente eu me vi

Por Haroldo França

De repente eu me vi. E não foi pelo espelho. Foi pelas frestas da porta de madeira da casa da minha avó, que não visito há tanto tempo. Um vento soprou no meu ouvido me convidando para um mergulho na piscina de plástico que havia nos fundos do quintal, perto da árvore. Eu prendi a respiração, mergulhei, e de repente eu me vi. Levando um tombo de bicicleta que me levaria a aprender o que é ficar com um braço enfaixado por alguns meses. Eu sonhei que visitava o céu e folheava o livro da vida. Eu enfiei um pedacinho de madeira por dentro do gesso, pra aliviar alguma coceira, e de repente eu me vi. Entrando na sala de aula da oitava série B vestindo uma roupa azul cintilante, gargalhando, com um anel dourado no peito, dizendo que iria dominar a Rússia, na minha primeira encenação de teatro na escola. Resolvi me matricular em uma escolinha de teatro, e de repente eu me vi. Tentando organizar pensamentos, traçar planos, desenvolver metodologias, ser alguém. A água daquela piscina de plástico foi se tornando cada vez mais funda, de modo que a imaginação me levou ao fundo do mar, onde encontrei uma ostra. Dentro da ostra havia uma bicicleta. E foi pedalando entre os peixes gigantes que eu me vi. E um deles me engoliu. De repente, eu não me vi mais.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Senhor Armando

Por Delianne Lima

Todos os bancos daquela avenida eram cinzentos, sem cor. Até que um dia, resolveram pintá-los. Escolheram verde petróleo. Só que, de cinza, não mudou muita coisa. Sentado em um daqueles bancos, o Senhor Armando passava suas tardes jogando gamão com alguns compatriotas. Naquela terça-feira, o pacote estava pronto: seu antigo boné de algum vereador desconhecido, uma camisa meio desabotoada devido ao calor e, claro, sua garrafa de Cerpa. A cerpinha de cada dia era sua mais fiel companheira.

Para começar as partidas sacramentais de gamão, alguns de seus amigos que trabalhavam nos arredores sentavam-se nos bancos. Senhor Armando nunca ganhava uma partida sequer, mas se sentia feliz com sua rotina diária.

Porém, um dia pintaram os bancos de outra cor: vermelho. Essa cor amedrontava o Senhor Armando de uma forma ensurdecedora.

Nunca mais jogou gamão.