quarta-feira, 25 de abril de 2012

Aquário

Maria precisava de um sono de beleza, então resolveu abandonar sua família. Vestiu sua camisola de seda branca, pegou o seu travesseiro de penas de ganso, seu melhor endredom, calçou as pantufas de coelhinho e atravessou a rua enquanto se espreguiçava. O trânsito estava engarrafado e barulhento. As pessoas andavam, nervosas, de um lado para o outro. Maria, por sua vez, tentava escolher o melhor lugar para se deitar. Sempre gostou de filmes, então escolheu a frente do velho cinema. Bocejando, pôs o tapa-olhos, se deitou, e foi morta.

Por Haroldo França

quinta-feira, 12 de abril de 2012

=P

Por Leandro Oliveira

Hoje é um daqueles dias em que a língua se aperta entre os dentes até sangrar. É uma agonia. Não pelo sangue, o inquietar da língua que insiste em se flagelar ou a dor absurda que isso causa. É pela agonia.

Quando a língua procura os dentes para sangrar é sinal de que o coração já não sangra, mas dói. É a maior das farsas do cotidiano, onde o sorriso impera e a língua atroz está a roçar entre os dentes, a se esconder, se ferindo nas coxias da boca e expurgando qualquer dor indesejada.

Queria poder cicatrizá-la, mas sempre que a agonia vem, a língua entra em desespero. É por ela que eu poderia gritar e pedir socorro, mas não. Então ela sangra. Os dentes cortam esta língua numa súplica corporal a um cérebro que já aprendeu a racionalizar certas coisas (de amor?), mas que não deixa de manter a língua presa à escravidão do sorriso. E ela se debate por entre a arcada, numa tentativa de comandar uma rebelião junto às cordas vocais para poder, finalmente, exercer sua função de expurgar todos os demônios pela boca, pois assim, desde que o meu mundo é mundo, eles entram e saem por ela.

E agora vocês me dão licença, porque se faz necessária uma assepsia bucal após mais uma grave crise da língua enquanto desenvolvia isto aqui. Até a próxima. Crise.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Grande e peluda

A plenitude é uma aranha enorme. Enorme, grande e peluda. Mas ela gosta de se camuflar de gatinho. Vem e te convida à imensidão dos pelos e carinhos e olhares furtivos. Vem e ronrona quando passas por perto. Daí chega, te entretém e pronto: sentes a plenitude.
Primeiramente a enxergas como a perfeição nas tuas mãos. É tudo aquilo que sempre sonhastes, que sempre quisestes ter por perto, em ti. Dentro de cada partícula do teu ser, das linhas das tuas mãos, das linhas da tua vida. Daí vem o futuro, que se torna presente – bem presente – e retira a carapuça.
Eis a aranha.
Maledita.
Eis o susto.
Eis o medo.
A aranha chega cada vez mais perto e te mostra a rotina, o vazio, o desejo de mais, cada vez mais. Parece que um buraco fundo te entorpece e entorta teus passos pra cair cada vez mais fundo. Depressão.
Como sair? Não sei. Parece que a ideia é ser forte. Forte e resistente e nunca perder a esperança de que, uma hora ou outra, tudo vai mudar. Mas, mudar pra que, se a plenitude já tá aqui? Não é esse o grande objetivo da vida? A grande busca de todos? A plenitude traz com ela a felicidade, não é? Acho que felicidade é que nem droga. Felicidade tem um certo tempo de duração, mas logo vai embora e traz a aranha gigante. Enorme e peluda.
A plenitude é uma cilada.
Quer dizer que a grande ideia de se aproveitar a vida é ter problemas sempre, dúvidas, dores, sofrer e fazer sofrer? Fazer merda, propriamente dita?

A ideia de se viver bem é o caos. Só deve ser.