segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Em nome do desabafo.

(Por Haroldo França)

Seus dedos são sempre inquietos. Sempre em busca de algo, seja uma tecla de computador, ou um fio de cabelo - seja do corpo ou da cabeça. Os fios de cabelo inundavam sua vida. Cresciam pelas paredes, e não adiantava mais cortá-los. Eles ressurgiam, envolvendo sua cama enquanto dormia, na tentativa de sufocá-lo. Os fios de cabelo o impediam de fechar as janelas. Estavam em suas roupas, em seus livros, em todo o lugar eles apareciam. Tentou, então, agradá-los. Deu um banho de xampu, na casa toda. Sentiu gosto de sabão na boca, e vomitou. Vomitou bolas e bolas de cabelo empapado de ácido gástrico. Tentou conviver com isso. Ia pra escola, pegava ônibus, e por onde passava, os fios de cabelo ameaçavam sair pelos esgotos ou pelas tubulações de ar. Mas sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de voltar pra casa. E todos os dias, era uma tentativa de homicídio. Como conviver com isso? Como receberia visitas em casa? A situação foi tomando contornos cada vez mais angustiantes. Foi quando decidiu: Clínica de depilação. Custaria caro, mas o faria, para salvar o que lhe restava de vida. Foi então que suas unhas começaram a crescer numa velocidade anormal. Sbia pelas paredes enquanto exclamavam ouvidos afora o quão inflamável poderia ser uma simpática adestrada e inquieta vizinha, flamejante, explosiva, temperatura, termômetro, vento ao vento. E assim, sem mais nem menos, deu-se ao encontro de seus pensamentos no ato de escrever o quão cruel poderia ser essa insaciante, infinita e sufocante busca pelo amar, pelo amor, e pelo relacionar-se. Opção? Sabia muito bem que não poderia sê-lo. Não poderia sê-lo! Era destino cravado. Como dente de jacaré, mandíbuila, afiada, vertical, na carne, estaria, no sangue, na alma. Não sairia. Não sairia. Não sairia. Não sairia. E a cada vez que se tocava disso, era como se um novo fio de cabelo nascesse, contornasse seu pescoço e o sufocasse. o sufocasse. o sufocasse. E Escorreu! Escorrendo foi até encontrar com sua grande paixão, aquele morto sentimento de se tornar avesso a tudo o que desafia o equilíbrio na vida. E quando essa inquietação exagera, se aproxima de angústia. E que angústia é essa, tão cabeluda, de garras tao grandes, que não deix ao pobre coitado dormir? Seria humana? O palpite que qualquer ser humano poderia mencionar é o de que abóboras são feitas para serem espatifadas, desperdiçadas, e seu suco deve ser absorvido pela terra, pelos mortos, pelos micróbios, para que um dia uma manga seja digerida e nela existam milhares de sentimentos universais, que passam pelas veias de todo ser humano, que não se permitem exalar-se ou multiplicar-se em sete partes. Ou será que poderia? Eu já havia dito, certa vez, que um não é o que é aquilo que se merece ser dado ao dízimo, e amadas são as vidas outroras tão coisas escalafobéticas e verbo, verbo, verborragia desce, escorre e planta na alma um sentimento profundo de inquietude, evasão, fuga, sentimentos que explodem a flor da pele, a flor, a pele, a planta, a raiz envenenada do ser que é careca, calvo de viver, um fio de vida que se rompe enrolado no dedo e leva a morte condensada num líquido que escorre pela língua e leva a crer que tu nada mais é que um objetivo inconcreto, inalcansável, praticante herdeiro de genes híbridos que um dia darão frutos a jardins encantados na Eutanásia, o lugar de onde todos aqueles malditos fios de cabelo nunca deveriam ter saído. Eles percorrem as ruas e alcançam o surreal, o inexplicável da existência humana, do relacionar, do comunicar e dizer sempre e sempre e sempre tudo o que menos importar e dizer que na verdade o que se é não importa, o que importa é apenas aquele maldito fio de cabelo que se arranca da cabeça, o que importa é finalmente a maldita dor que eu sinto a três dias, e a necessidade de manter meus dedos ocupados, falando, comunicando, teclando, para que não retornem à minha cabeça e me façam crer que perecerei, e não terei a vida eterna.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Eco

(Por Leandro Oliveira)

Insistir. A força me movia lentamente, levemente e da forma mais intensa que poderia mover. Intensamente.
As perguntas apareciam e me diziam para ter certeza e cuidado, que nada iria acontecer e que aquela cara de bichinho acuado era coisa do passado. Balela. Eu não sou nada daquilo que tenho potencial para ser e todos sabiam disso. E ninguém me dizia nada. E o nada, absoluto se tornou. Frígido, horrendo, ridículo.

- Definitivamente você já foi mais interessante.

(ecoou, ecoou, ecoou)

E agora o insistir, meu Deus, se tornou um sofrimento lastimável.
Fama, fortuna, façanhas e maravilhosas idolatrias, todas deixadas para trás.

- É hora de levantar e gritar: Fudeu!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Melhor Blog?

Estamos concorrendo ao título de "Melhor Blog Paraense", na categoria ficção, no Blogueiros Paraenses.

Vote, clicando aqui!

Helicóptero!

Por Haroldo França

(Texto para cena, a ser feita por um ator com antenas na cabeça. Podem ser antenas de inseto, de televisão, de chapolin, etc.)


Eu acredito em seres encantados que nos visitam enquanto dormimos. Eu sei, e posso provar. São de três tipos: os duendes, as fadas, e os helicópteros. Eles são muito pequeninos, e estão em todos os lugares, disfarçados de carapanãs. Sim! Esses danados! Mas agora já os descobri: São ladrões de lembranças. É, te juro! Quando caímos no sono, eles se aproximam, e, depois de se certificarem de que não estamos fingindo e que estamos realmente dormindo, começam a pôr seus planos em ação. Tiram suas fantasias de carapanã com um ziper secreto que têm na barriga, e se preparam para começar o trabalho.

Cada um desses seres encantados tem preferência por um tipo de pessoa: Quando tudo já está preparado para o bote, eles se organizam em linhas de ação: os duendes seguem por via terrestre, e escalam os indivíduos até penetrarem por seus ouvidos. As fadas, aladas, têm uma preferência maior pelas narinas. Já os helicópteros se restringem apenas àqueles que dormem de boca aberta, invadindo garganta adentro.

Eu sou do tipo que dorme de boca aberta. ¬¬

Durante toda a minha vida, fui surpreendido por momentos em que o sono parece roubar, violentamente, das minhas mãos, e da minha mente, descobertas íntimas sobre a minha própria existência. Muitas vezes me senti traído, violado, como se alguém tivesse aberto a minha cabeça durante o sono e tivesse me roubado alguma lembrança preciosa. Hoje eu sei! São eles! Os helicópteros! Os desgraçados entraram na minha cabeça, e tiraram do meu cérebro as lembranças!

Tá olhando o que? Eu tenho provas, tá? As minhas suspeitas começaram há mais ou menos quinze anos atrás. Foi em um sonho...

Eu era criança, e no pátio de casa, minha cadela Punky ainda lembrava uma pulguinha saltitante e feliz. Era uma manhã comum de sábado, e surgiu, na frente da minha casa, um senhor feliz, com um carrinho, desses de carregar cimento, com uma televisão vermelha em cima. Eu abri o portão, subi no carrinho, e fiquei assistindo a televisão vermelha, enquanto o senhor levava o carrinho, com eu e a tv dentro, pra passear.

Isso era uma coisa tão comum... eu já via aquela TV vermelha, e aquele senhor há muito, muuuuito tempo. E passear vendo TV num carrinho de cimento pelas ruas do conjunto onde morava era super normal! De repente, percebi que estava prestes a voar! Mas aí, bum! Quando vi, estava acordando de mais um sonho. Hunf! Desgraçados! Senti a vida se virando violentamente contra mim, e me virando de cabeça pra baixo, sacudindo até fazer essa lembrança cair, como uma moeda. De repente, o destino vira pra mim e me diz: "sabe aquela televisão, aquilo que é tão comum e verdadeiro pra ti, e pra tua vida? Pois é: foi só um produto da tua imaginação fértil! Um sonho besta, que durou alguns minutinhos bestas, que nunca vão voltar. NUNCA! Ouviu bem?"

Durante quinze anos, eu carreguei comigo essa neura. Eu sempre tive a certeza de que a televisão vermelha existe, e que o velhinho do carro de cimento está levando crianças por aí pra passear, até hoje! Mas foi na noite de ontem, que eu tive a grande descoberta.

Na noite de ontem, eu tive um sonho. Sonhei que estava, novamente, no pátio da minha casa, numa manhã comum de sábado. Só que agora eu já tinha barba, e a minha cadela já carregava um caranguejo preto embaixo do rabo. Era estranho, porque o sol brilhava, mas havia um silêncio profundo e pleno. Ouvi o som de Beatles, tocando, bem longe. Era She Loves You. Curioso, abri o portão, e resolvi seguir esse som. Quando pus os pés na rua, vi, bem de longe, uma silhueta inconfundível. Era ele! O velho com o carrinho de cimento com a televisão vermelha em cima! E, cara, tava passando Beatles! Imediatamente, corri, com todas as forças que tinha. Simplesmente corri, e o silêncio cedeu lugar para a batida da música da TV em compasso com meus passos nervosos e minha respiração ofegante. O meu corpo atravessou o vento numa velocidade incrível, em busca da minha verdade, que eu sempre soube que ninguém poderia me tirar. O som do vento, da minha respiração, da TV e de uma vida inteira se passando entre um ouvido e outro cresceu tanto a ponto de se tornar um barulho ensurdecedor. O vento ficou cada vez mais forte, e, quando percebi, por trás do muro apareceu ele: o Helicóptero! Era gigantesco. Um foco de luz se acendeu sobre o velho com o carrinho. Imediatamente, um enxame de carapanãs surgiu de dentro dos esgotos, até formarem uma imensa nuvem preta, e eram tantas, que levantaram o carrinho com o velho e a TV dentro. Sumiram por trás das nuvens, num piscar de olhos.

Percebi, então, que os malditos deixaram cair algo fundamental: A antena. De repente, o céu começou a entrar em interferência, como uma TV mal sintonizada. Percebi: Eu estava prestes a acordar. Sem pensar duas vezes, me atirei no chão empoeirado, e me agarrei, com todas as forças, naquela antena.

(A partir daqui, ator vai colocando pedaços de palha de aço nas pontas das antenas)

Quando acordei, levantei de sobressalto, e fui me olhar no espelho. Foi quando eu tive plena certeza. É isso. Isso mesmo. Agora tudo faz sentido.

O tartarugo

Por Haroldo França

Era uma avó do tipo sanguinária. Uma velha dessas que já devia ter gasto pela vida inteira tudo o que havia de bom em seu espírito. Lembro que quando ela se aproximava, eu já sentia um misto de angústia e medo. Não era respeito: era medo! Eu olhava para cima, e tinha vontade de puxar os bicos de seus peitos para baixo, e me pendurar, até fazê-la gritar!

Uma velha inteiramente dedicada ao suado trabalho de destruir sonhos. Arrancava-os, com as próprias mãos, não importando a quantidade de sangue derramado.

Eu tinha quatro anos. Estava com meus primos, brincando no quintal. Muita areia, resto de barro, algumas mangas caídas, algumas folhas secas, árvores e galinhas, fazendo a festa, com muita sujeira, numa manhã feliz. Eu gostava de correr atrás das galinhas. Era como se elas estivessem brincando, junto comigo. Naquela altura da vida, eu ainda não fazia idéia de que elas corriam para fugir da morte.

Tínhamos um novo amigo: Frederico, o "tartarugo". Ele era mais na dele, meio tímido, parecia um tanto mal-humorado, até. Não entrava muito nas nossas brincadeiras. Mas era tão raro ter um bicho daqueles, tão diferentão, que não tinha como não nutrir por ele um sentimento especial. Nos divertíamos tocando em sua testa, para fazê-lo se esconder dentro do casco. Era a única brincadeira que sabia. Deixamos ele dentro de casa, descansando, enquanto fomos brincar no quintal.

A algazarra toda se interrompeu quando vimos entrar na casa, um homem estranho. Era todo grandão, e tinha a maior cara de mau. Fizemos silêncio, largamos as brincadeiras e fomos espiar pelos vidrinhos que tinham na parede da casa. Haviam duas bacias no chão. A velha as encheu de água. Frederico estava com eles, sem ter para onde nem como escapar. Antes que pudesse fugir para dentro de si mesmo, a faca atravessou seu pescoço. Numa fração de segundos, a janela que estava diante de mim foi tomada por uma mancha vermelha, escura e nojenta. Era como se eu presenciasse a morte de um amigo.

A cabeça foi para uma bacia d'água, e o corpo, para outra. E, com a lardeza de uma tartaruga, assim como uma ferida, que mesmo para uma criança, demora - sim! - para cicatrizar; a morte de Frederico foi terrivelmente lenta. Durante horas, o corpo, jorrando sangue, tentava sobreviver. As patas se movimentavam contra a água. Lentamente. Pausadamente. Durante horas.

No início da tarde, o almoço foi servido. Eu, e as outras crianças, ficamos de luto, e nos recusamos a beber do nosso próprio sangue.

Hoj
e, eu tenho vinte e um anos, e acho que a vida já gastou boa parte do que havia de bom em mim.



(Texto baseado em fragmentos de narrativas de vida pessoal recolhidos pelo grupo Helicóptero de pesquisa em Artes Cênicas)