quarta-feira, 23 de maio de 2012

Caridade

Deu aquela última mirada nas estrelas. Os prédios altos. Lembrou de quando morava no interior. Quando deitava no chão de terra batida e olhava as estrelas entre as folhas das árvores, sonhando com o dia em que se mudaria para a cidade grande. Percebeu que já não haviam árvores. Somente um viaduto, e em algum lugar acima, a Lua. Se virou para o lado e cobriu a cabeça com o cobertor.

O chão estava frio e úmido. Encolheu o corpo. O velho Tobias deu três latidos.

-Cala a boca, cachorro.

Um pneu de carro passou cantando no asfalto e deu um grito bem no seu cangote. Susto. Tobias foi esmagado. Uma mulher, com o rosto sangrando, saiu do carro, deu três passos frágeis e caiu no chão, com os olhos bem abertos. As unhas pintadas de vermelho arranhando o concreto da calçada.

-Me ajude... Senhor... Jesus...

Desconfiado, recuou. Não sabia até que ponto aquilo estava mesmo acontecendo. Segurava com força um canivete que trazia consigo.

-Tu deve tá me confundindo. O meu nome é Edson. Tu matou o meu cachorro.

-Senhor Deus!... Por favor... Olhe para mim...

As unhas vermelhas de sangue apertando a mão do mendigo. Respiração trêmula.

-Senhor... Você me perdoa?

Os olhos nos olhos. Úmidos.

-Sim, minha filha. Perdôo. Perdôo tudo, pois sei que é de coração que falas. Saiba que eu sempre te amei, e sempre te amarei. Você sempre foi uma menina boa. Você sabe disso. Agora durma... Durma em paz, que te encontrarei no Reino dos Céus.

Desfaleceu em seu colo, como uma filha.

Longo suspiro.

Amanheceu.

Por Haroldo França

3 comentários:

str4nho disse...

Que forte o.O
mas gostei o/

Ives Nelson disse...

Geeente... achei tão arquetípico, meio o início da "Travessa"!! Gostei!

delianne lima disse...

"Percebeu que já não haviam árvores" - não haviam mais sonhos.

Então estava frio, e logo escureceu.