sábado, 20 de março de 2010

Sobre Voar

(Por Monique Malcher e Haroldo França)

Em meio a barbitúricos, latinhas, plásticos e todos os 'não quero mais' dos outros, lá estava ele, mais um 'não quero mais', vivo, latente, pessoa.

Suas perninhas eram magras e pareciam ossinhos de galinha em meio a tantos sacos de lixo. Seus olhos eram cheios daquele vazio que se sente quando os pés adormecem. O líquido que saia de suas narinas minúsculas havia secado na pele queimada do rosto. Os ombros eram cheio de mordiscados que sangravam vez ou outra, sua respiração chiava como o rádio de quem procura uma estação tocando Lamento Sertanejo do Gil e as linhas de suas mãos eram tão finas quanto sua chance de sobreviver.

Uma criatura se aproximou. Aquelas penas negras, aquele bico rijo, urubu, foi se aproximando, arisco e curioso. Chegava cada vez mais perto, atraído pelo cheiro de placenta e de sangue. Quando ia tascar o bico feroz, fazendo o que seria convencional, as mãos daquela criaturinha lhe coçaram a barriga. Como um cão bobo, sua cabeça de urubu tombou levemente para a direita, em sentido de admiração. Nesse momento, um novo mundo foi descoberto. Um mundo onde urubus falam e crianças podem voar. Nesse momento, se formava uma família.

Carniça, batizado de cara, tinha então encontrado seu lar.

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