quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Helicóptero!

Por Haroldo França

(Texto para cena, a ser feita por um ator com antenas na cabeça. Podem ser antenas de inseto, de televisão, de chapolin, etc.)


Eu acredito em seres encantados que nos visitam enquanto dormimos. Eu sei, e posso provar. São de três tipos: os duendes, as fadas, e os helicópteros. Eles são muito pequeninos, e estão em todos os lugares, disfarçados de carapanãs. Sim! Esses danados! Mas agora já os descobri: São ladrões de lembranças. É, te juro! Quando caímos no sono, eles se aproximam, e, depois de se certificarem de que não estamos fingindo e que estamos realmente dormindo, começam a pôr seus planos em ação. Tiram suas fantasias de carapanã com um ziper secreto que têm na barriga, e se preparam para começar o trabalho.

Cada um desses seres encantados tem preferência por um tipo de pessoa: Quando tudo já está preparado para o bote, eles se organizam em linhas de ação: os duendes seguem por via terrestre, e escalam os indivíduos até penetrarem por seus ouvidos. As fadas, aladas, têm uma preferência maior pelas narinas. Já os helicópteros se restringem apenas àqueles que dormem de boca aberta, invadindo garganta adentro.

Eu sou do tipo que dorme de boca aberta. ¬¬

Durante toda a minha vida, fui surpreendido por momentos em que o sono parece roubar, violentamente, das minhas mãos, e da minha mente, descobertas íntimas sobre a minha própria existência. Muitas vezes me senti traído, violado, como se alguém tivesse aberto a minha cabeça durante o sono e tivesse me roubado alguma lembrança preciosa. Hoje eu sei! São eles! Os helicópteros! Os desgraçados entraram na minha cabeça, e tiraram do meu cérebro as lembranças!

Tá olhando o que? Eu tenho provas, tá? As minhas suspeitas começaram há mais ou menos quinze anos atrás. Foi em um sonho...

Eu era criança, e no pátio de casa, minha cadela Punky ainda lembrava uma pulguinha saltitante e feliz. Era uma manhã comum de sábado, e surgiu, na frente da minha casa, um senhor feliz, com um carrinho, desses de carregar cimento, com uma televisão vermelha em cima. Eu abri o portão, subi no carrinho, e fiquei assistindo a televisão vermelha, enquanto o senhor levava o carrinho, com eu e a tv dentro, pra passear.

Isso era uma coisa tão comum... eu já via aquela TV vermelha, e aquele senhor há muito, muuuuito tempo. E passear vendo TV num carrinho de cimento pelas ruas do conjunto onde morava era super normal! De repente, percebi que estava prestes a voar! Mas aí, bum! Quando vi, estava acordando de mais um sonho. Hunf! Desgraçados! Senti a vida se virando violentamente contra mim, e me virando de cabeça pra baixo, sacudindo até fazer essa lembrança cair, como uma moeda. De repente, o destino vira pra mim e me diz: "sabe aquela televisão, aquilo que é tão comum e verdadeiro pra ti, e pra tua vida? Pois é: foi só um produto da tua imaginação fértil! Um sonho besta, que durou alguns minutinhos bestas, que nunca vão voltar. NUNCA! Ouviu bem?"

Durante quinze anos, eu carreguei comigo essa neura. Eu sempre tive a certeza de que a televisão vermelha existe, e que o velhinho do carro de cimento está levando crianças por aí pra passear, até hoje! Mas foi na noite de ontem, que eu tive a grande descoberta.

Na noite de ontem, eu tive um sonho. Sonhei que estava, novamente, no pátio da minha casa, numa manhã comum de sábado. Só que agora eu já tinha barba, e a minha cadela já carregava um caranguejo preto embaixo do rabo. Era estranho, porque o sol brilhava, mas havia um silêncio profundo e pleno. Ouvi o som de Beatles, tocando, bem longe. Era She Loves You. Curioso, abri o portão, e resolvi seguir esse som. Quando pus os pés na rua, vi, bem de longe, uma silhueta inconfundível. Era ele! O velho com o carrinho de cimento com a televisão vermelha em cima! E, cara, tava passando Beatles! Imediatamente, corri, com todas as forças que tinha. Simplesmente corri, e o silêncio cedeu lugar para a batida da música da TV em compasso com meus passos nervosos e minha respiração ofegante. O meu corpo atravessou o vento numa velocidade incrível, em busca da minha verdade, que eu sempre soube que ninguém poderia me tirar. O som do vento, da minha respiração, da TV e de uma vida inteira se passando entre um ouvido e outro cresceu tanto a ponto de se tornar um barulho ensurdecedor. O vento ficou cada vez mais forte, e, quando percebi, por trás do muro apareceu ele: o Helicóptero! Era gigantesco. Um foco de luz se acendeu sobre o velho com o carrinho. Imediatamente, um enxame de carapanãs surgiu de dentro dos esgotos, até formarem uma imensa nuvem preta, e eram tantas, que levantaram o carrinho com o velho e a TV dentro. Sumiram por trás das nuvens, num piscar de olhos.

Percebi, então, que os malditos deixaram cair algo fundamental: A antena. De repente, o céu começou a entrar em interferência, como uma TV mal sintonizada. Percebi: Eu estava prestes a acordar. Sem pensar duas vezes, me atirei no chão empoeirado, e me agarrei, com todas as forças, naquela antena.

(A partir daqui, ator vai colocando pedaços de palha de aço nas pontas das antenas)

Quando acordei, levantei de sobressalto, e fui me olhar no espelho. Foi quando eu tive plena certeza. É isso. Isso mesmo. Agora tudo faz sentido.

Um comentário:

"Alguma frequencia" disse...

sempre penso o mesmo, só que minhas criaturas são gnomos =X

e meu sonho tem a ver sempre com um balanço que eu tenho certeza que ja vi e toquei, ate usei, mas não lembro...o qeu será que cairia dele?!